quarta-feira, 6 de agosto de 2014

O Sr. Fernando

Mudar de casa, mesmo que dentro da nossa Alface, obriga a muitas correrias e cansaços. Mas é também altura para rever papéis, deitar tralhas fora, recuperar relíquias há muito perdidas para os esconderijos do soalho. E já agora, como manda o Feng Shui, reparar tudo o que está partido, avariado, sem funcionar para a função a que se destina. Nesse estado estava uma cadeira antiga, que passou do meu pai para mim: as costas e o assento eram duas almofadas cujo forro se descosera. Há meses que esperavam a minha dedicação. E o meu bolso.
Recorri ao OLX, onde tenho feito pequenos grandes negócios, sobretudo em relação a serviços: virem a nossa casa dar um orçamento (como aconteceu com a minha máquina de lavar loiça) sem ficarmos obrigado a pagar de imediato os infortúnios da deslocação+iva é um bálsamo que o Feng Shui deveria estudar. E foi por lá que descobri o contacto do Sr. Fernando.
Quando com ele me encontrei, numa tarde em que o vento soprava um verão incerto, ali junto ao Centro Comercial do Lumiar, o Sr. Fernando não tinha como transportar as almofadas. Tivera um acidente há sete anos, na sua carrinha Ford Transit, contra uma estrutura metálica muito perigosa que havia ali numa rotunda da Póvoa de Santo Adrião. Parece que só quando lá morreu uma pessoa, já depois do seu caso, é que resolveram retirá-la. E é por isso que o Sr. Fernando anda de bicicleta por toda a cidade. Dei-lhe então boleia para a oficina e de volta para onde deixara as duas rodas. Pelos atalhos tortuosos da Ameixoeira, o Sr. Fernando tinha muita estórias para contar; e eu, embora não quisesse, tinha de ir brandamente interrompendo para me certificar dos atalhos. “No outro dia fui até Alfragide dar um orçamento”. “De bicicleta, Sr. Fernando?”. De bicicleta. 
Ao chegarmos a uma rua sem saída, alguns cães vagueavam, pachorrentos, junto ao lixo que se espalhava na rua. Crianças de férias brincavam no meio das ervas daninhas. Já tivera uma oficina, agora trabalhava na garagem de casa. O volume de trabalho e as despesas não justificavam outra opção, agora que já passava dos sessenta. Também estofava tejadilhos de carros. Estivesse ali um que na semana anterior arranjara e eu logo o comprovaria! “Pois sim, Sr. Fernando, bem sei, que o meu avô foi estofador e é um trabalho de arte. Agora não há é massas!”. E o sr. Fernando baixou-me o preço do conserto. E por acaso não conhecia ninguém que arranjasse máquinas de lavar? Claro que sim, e barato, e de confiança. “Digo que é para um amigo meu”.
De volta ao Lumiar, e antes de chegarmos ao sítio onde o apanhara, insistiu que o deixasse num semáforo atrás, assim eu cortaria caminho e ele daria mais uma corridinha. Não fazia mal, não tinha mais nada que fazer a não ser ir trocar o telemóvel que comprara dias antes. “Eu oiço muito bem toda a gente, as pessoas do outro lado é que me ouvem mal”. Felizmente, o Sr. Fernando, sempre que compra um telemóvel, faz um seguro; e diz que tem tido sorte!

Lá seguiu o Sr. Fernando, em passo de corrida, de mochila às costas e calças à pirata, rumo a mais um afazer do seu dia na Grande Alface.

Gustavo Duarte

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